Creative Commons e Museu da Imigração: notas sobre uma experiência brasileira

juliana Monteiro

Tive a grata oportunidade de participar do segundo Institute for Open Leadership (IOL), realizado na Cidade do Cabo e promovido pelo Creative Commons e pela Open Policy Network. Além de mim, o instituto recebeu pessoas de vários lugares do mundo, todos com projetos incríveis. Nos últimos nove anos, tenho atuado na área de documentação em museus e gestão de coleções. Além disso, sou graduada em Museologia e tenho mestrado em Ciência da Informação. Atualmente, sou gestora das coleções do Museu da Imigração de São Paulo. Também sou professora no curso técnico de Museologia na ETEC Parque da Juventude, onde dou aulas sobre bancos de dados para museus.

Durante o Institute for Open Leadership, pude entrar em contato com um mundo até então pouco conhecido por mim: o mundo de iniciativas pró-conhecimento aberto, ciência aberta, educação aberta e muito mais. Além disso, enquanto profissional da área GLAM (“GLAM” é um acrônimo, em inglês, para “galleries, libraries, archives, and museums”, ou “galerias, bibliotecas, arquivos e museus”) tive a chance de receber diferentes retornos a respeito da proposta que apresentei para o instituto. Posso dizer, assim, que o IOL representou um momento importante e, de certa forma, um divisor de águas para o projeto que estou liderando na instituição onde atuo.

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colar Lituano selecionado para fazer parte da exposição, por, by Conrado Secassi. CC BY-SA 4.0. Fonte: Wikimedia Commons.

Inicialmente, o projeto era focado nos seguintes problemas: o que podemos explorar em uma coleção grande e rica por meio de compartilhamento de conteúdos, se nós não tivermos informações sobre os direitos de autor incidentes, bem como os direitos de reprodução ou de personalidade? Como podemos transformar o Museu da Imigração em uma instituição interessada em abrir suas coleções apesar das limitações envolvidas?

Muitos profissionais que trabalham em instituições GLAM constantemente enfrentam problemas relacionados à propriedade intelectual e direitos de autor relacionados às suas coleções. Por essa razão, é muito comum que sejamos imediatamente direcionados a focar nas restrições muito mais do que nas possibilidades de compartilhamento – que, claro, demandam atenção, mas que não possuem uma solução rápida ou imediata. Ao colocar tais questões no escopo do meu projeto, eu esperava encontrar respostas e boas práticas de outros profissionais GLAM. Eu necessitava encontrar uma resposta melhor à questão sobre como compartilhar melhor do que “isso não pode ser feito”.

Ao conhecer os outros projetos e os participantes do IOL, pude ouvir muitas histórias interessantes sobre como universidades e outras instituições de pesquisa conseguiram estabelecer políticas abertas mediante algumas ações de curto, médio e longo prazos – às vezes, algumas ações eram muito básicas, porém estrategicamente importantes. Pude aprender também que processos de criação e aplicação de políticas abertas podem (e devem) ter diferentes etapas e níveis. Finalmente, aprendi que seria crucial começar aos poucos o meu projeto e com aquilo que iria trazer benefícios diretos para as pessoas diretamente envolvidas. E aqui posso dizer que reside o principal turning point para o projeto do Museu da Imigração.

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chapéu de Ryukyu selecionado para fazer parte da exposição, por Letícia Sá. CC BY-SA 4.0. Fonte: Wikimedia Commons.

Ao invés de focar nas questões de propriedade intelectual mais difíceis relacionadas à parte da nossa coleção, revisei meu projeto para que ele pudesse, ao contrário, explorar aqueles materiais que poderiam ser usados e compartilhados de uma forma mais aberta. Em outras palavras, o projeto foi redesenhado para começar com itens da coleção que eram livres de quaisquer restrições de direitos de autor, e que poderia, por exemplo, ser fotografados pela equipe atual do Museu da Imigração. Desta forma, o museu poderia – enquanto autor de fotos, textos, imagens e materiais audiovisuais sobre a coleção – tornar tais objetos disponíveis na web por meio de blogs, redes sociais e outras plataformas. Ao mesmo tempo, o museu poderia estabelecer como este conteúdo poder ser reusado por qualquer pessoa ao adotar as licenças Creative Commons.

Já de volta ao Brasil, a primeira grande tarefa realizada por mim foi conversar com as diferentes equipes técnicas do Museu da Imigração a respeito do que é o Creative Commons e convencê-las sobre o que poderia ser feito para começarmos uma política aberta em nossa instituição. Meus colegas imediatamente concordaram de que deveríamos ir adiante com o projeto, e decidimos que nossa iniciativa piloto começaria com todo o conteúdo produzido para a exposição temporária O Caminho das Coisas.

O principal motivo para escolher esta exposição particular como nosso projeto piloto foi a possibilidade de envolvimento direto de vários profissionais no desenvolvimento de conteúdos e materiais para disponibilização online com licença aberta. Assim, todos teriam a chance de ver – em um período relativamente curto de tempo – o impacto de seu trabalho contribuindo para o aumento da visibilidade do acervo e de outros materiais produzidos pelas próprias equipes. Outro motivo importante também foi que essa exposição era o resultado de um processo colaborativo de pesquisa do Museu da Imigração com comunidades de migrantes e descendentes, instituições parceiras e antigos doadores, cujo alvo é levantar mais informações sobre o acervo da instituição.

Nós concordamos em usar as licenças Creative Commons porque elas constituem um jeito claro e objetivo de comunicar ao público o que pode ser feito com o conteúdo produzido pelo museu e que disponibilizamos na web. Além disso, ao usar as licenças Creative Commons, o museu participa de um grande movimento promovido pelo CC relacionado ao compartilhamento, remix e reuso do conhecimento em uma escala global.

A partir da decisão, imagens das peças selecionadas para a exposição foram produzidas e selecionadas pela própria equipe, assim como os materiais educativos relacionados. Também decidimos que o blog do museu e o seu perfil no Medium  deveriam ser usar a licença CC BY-SA 4.0 a partir daquele momento em diante.

As plataformas utilizadas para divulgar as imagens foram o Flickr (que é bastante usado no Brasil por fotógrafos profissionais ou amadores, bem como por instituições), Pinterest (não muito popular no Brasil, mas com seguidores fiéis), e Wikimedia Commons. Sobre o última, vale destacar a grande colaboração de Rodrigo Padula, coordenador do Grupo Wikimedia Brasileiro de Educação e Pesquisa, que nos ajudou no carregamento de imagens e materiais educativos no Wikimedia Commons.

1200px-Inauguração_da_exposição_o_caminho_das_coisas_Núcleo_Caminhosvisão geral da exposição, por Juliana Monteiro. CC BY-SA 4.0. Fonte: Wikimedia Commons.

O Caminho das Coisas inaugurou dia 21 de maio, com uma expografia muito bonita e feita para promover uma reflexão junto ao público sobre os caminhos que os objetos percorrem ao longo da vida de seus antigos proprietários até chegarem ao museu. Além disso, em vários pontos da exposição foram colocados QR codes convidando o público a checar as imagens existentes nas plataformas citadas anteriormente. Nós também tínhamos a expectativa que os visitantes poderiam compartilhar as imagens e taggear o museu nas redes sociais.

Nosso projeto piloto foi lançado há quase dois meses, e nós já podemos dizer que ganhamos alguns insights interessantes. O primeiro é que a experiência tem sido, sim, muito instigante e exitosa. Na perspectiva da nossa equipe, as cerca de 40+ imagens postadas no Flickr, Pinterest e Wikimedia Commons abriram inúmeras possibilidades de reuso do material. Além disso, o projeto representa um passo rumo à disponibilização cada vez maior das coleções do museu para diferentes públicos. Nós também estamos planejando novas iniciativas e analisando os dados que conseguimos adquirir a partir deste piloto.

Outros aspectos da exposição têm mostrado para nossa equipe que ainda temos um longo e produtivo caminho pela frente. Identificamos que um desafio significativo para as instituições GLAM no Brasil é a capacidade e conhecimento para considerar a “abertura” de todas as coleções como uma atividade normal, rotineira. Apenas algumas de nossas instituições promovem iniciativas abertas e o público nem sempre compreende o que pode ser criado a partir ou com os materiais. Do mesmo modo, a falta de ferramentas que encorajem as pessoas a fazer isso pode ser um fator que contribui com tal cenário. Claramente, nós queremos que as pessoas deem likes no Facebook e compartilhem os conteúdos nas redes sociais, mas ainda não sabemos se ou como as imagens estão sendo reutilizadas em outros contextos. Por último, vale dizer que ainda há uma falta de conhecimento geral a respeito das licenças Creative Commons – tanto por parte do público quanto por parte das instituições.

Com isso em mente, sabemos que não é suficiente simplesmente subir imagens na web – nós precisamos falar às pessoas sobre elas, contextualizá-las e conseguir retornos de diferentes públicos. Nosso uso das redes sociais nesta experiência nos mostrou que precisamos adaptar nossa forma de falar sobre conteúdo aberto de forma a atingir novos e diferentes grupos. Nós já aprendemos, por exemplo, que não é válido mostrar fotos de detalhes de objetos no Wikimedia Commons, já que este tipo de imagem não colaboraria na alimentação de artigos da Wikipédia. Porém, elas podem ser exploradas no Pinterest, pois o público ali está mais acostumado a pesquisar por esses tipos específicos de imagens em detalhe.

Sabemos também que o Flickr é uma ferramenta muito útil para fotógrafos – inclusive aqueles interessados em licenciar suas imagens para uso comercial. Ao mesmo tempo, podemos direcionar nosso trabalho para usar outras plataformas alternativas que falem sobre o projeto e convidem o público a visualizar, curtir e comentar nossas imagens. E do mesmo modo, aplicativos e sites como Instagram e Facebooks são muito populares no Brasil e podem ser explorados nas próximas experiências.

Estamos aprendendo por tentativa e erro. Queremos testar nossas ideias e verificar quais delas vão amadurecer. Minha bolsa para participar do IoL tornou possível para nós incluir a proposta de abrir nossas coleções como algo que o museu deveria incorporar de forma mais sistemática em nossas políticas internas e missão pública. Acreditamos que por meio destes passos nós conseguiremos promover um patrimônio cultural cada vez mais aberto e acessível para todos.